Dom da Sabedoria
Nos capítulos
anteriores mostrei o admirável paralelismo que existe entre a ordem natural e a
sobrenatural. Na primeira bagagem intelectual do nosso espírito não é formada
de conhecimentos isolados, mas o espírito realiza ali uma coordenação de
conhecimentos, forma com eles um sistema, imprime-lhes unidade; cada ciência
coordena os conhecimentos que lhe pertencem e os estuda em suas causas e em
seus princípios. E nosso espírito pretende ainda fazer uma coordenação
superior, a coordenação da sabedoria, unificando e coordenando nas coisas mais
altas e profundas todo o campo vastíssimo dos conhecimentos humanos,
Com maior razão são
necessárias estas coordenações na ordem sobrenatural; não seria suficiente
penetrar, uma por uma, as verdades pelo Dom do Entendimento, como o expliquei,
para ter a perfeição do conhecimento sobrenatural; é preciso perceber os
vínculos que unem entre si as criaturas, e as criaturas com Deus, é
indispensável que todos os conhecimentos sobrenaturais que possuímos formem
também uma coordenação, um sistema e se unifiquem.
O Dom da Ciência
estabelece certa coordenação; mas a coordenação suprema, a que abarca, por
assim dizer, numa unidade perfeita todos os conhecimentos sobrenaturais, é o
Dom da Sabedoria.
Assemelha-se ao
conceito de sabedoria que temos na ordem natural; nesta ordem, a sabedoria é a
coordenação de todos os nossos conhecimentos pelas causas altíssimas das
coisas. E na ordem sobrenatural dos Dons, o Dom da Sabedoria abarca todos os
conhecimentos sobrenaturais e os coordena na causa suprema, no princípio
altíssimo, em Deus.
Este Dom que vou
mostrar agora é o mais alto de todos os Dons, tem uma riqueza incalculável,
porque são Paulo assegura que o homem espiritual julga todas as coisas e, como
muito bem explica o apóstolo nesta passagem da primeira Carta aos coríntios, as
julga porque recebeu o Espírito Santo, que perscruta até as profundezas de
Deus. “O Espírito perscruta todas as
coisas, até as profundezas de Deus” (I Cor 2,10). Nós recebemos este
Espírito e por isso, diz, não falamos com as palavras da sabedoria humana, mas
com a doutrina do Espírito Santo que recebemos em nós.
O Dom da Sabedoria
abarca tudo, mas nesses vastos conhecimentos que a alma pode alcançar pelo Dom
da Sabedoria há uma unidade perfeita, porque consiste tudo a partir da excelsa
atalaia, olha tudo a partir da causa suprema de Deus.
Para compreender, na
medida do possível, este Dom, devo recordar uma doutrina que já expus muitas
vezes nesta série de capítulos acerca dos Dons do Espírito Santo. Expliquei
como pelos Dons conhecemos por certa conaturalidade com as coisas que são
objeto dos nossos conhecimentos e por uma experiência íntima que temos das
coisas divinas. Embora o tenha repetido várias vezes, quero dizê-lo mais uma
vez; porque, de um lado, é difícil encontrar esta ideia e, de outro, é
fundamental para o conhecimento do Dom da Sabedoria.
O conhecimento que
temos pelos Dons do Espírito Santo é um conhecimento que nasce de uma
experiência íntima, de uma conaturalidade e proporção que chegamos a ter com as
coisas que conhecemos, em virtude de estarmos unidos com Deus pela virtude da
caridade.
Já disse, em algum dos
capítulos anteriores, como até mesmo na ordem natural o amor é uma fonte de
conhecimentos: compreendemos muito bem o que amamos.
O artista que ama uma
beleza em qualquer ordem, com que facilidade compreende todas as coisas
relacionadas com ela; há conaturalidade, há proporção entre a beleza que a arte
realiza e a maneira de ser dele, visto que seu espírito está inclinado justamente
a conhecer as coisas belas.
E o arqueólogo que ama
as antiguidades e descobre por toda parte os vestígios do passado, tem o
sentido do antigo; o amor que possui para com este gênero de conhecimentos faz
com que compreenda melhor todas as coisas relacionadas com este ramo.
E quando uma pessoa
ama outra e a trata com intimidade, com que facilidade compreende os
sentimentos íntimos da pessoa amada, como parece adivinhar seus sentimentos;
não é a mesma coisa que conhecer uma pessoa por referências e conhece-la pelo
trato íntimo, e quanto mais íntimo é o trato, mais perfeitamente se conhece.
Não é verdade que os
que se amam estão, de certa forma, um no outro? O próprio Jesus nos diz com
relação ao seu amor: “Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue, permanece em
mim e eu nele”. E na verdade, quem ama, está no objeto amado, projeta seu
coração, sua inteligência e seu ser naquele que ele ama, e traz no íntimo de
sua alma, no mais profundo das suas entranhas, o ser amado, são Paulo
atreveu-se a dizer aos fiéis: “Trago-os no íntimo do meu coração”.
Mas não é simplesmente
esta virtude que o amor tem de fazer-nos compreender o que amamos e de aplicar
todas as nossas faculdades para chegar ao conhecimento mais profundo do ser
amado o que basta para explicar esta experiência íntima que temos das coisas
divinas pelos Dons do Espírito Santo. Existe algo ainda mais perfeito; por nós,
pela caridade, estamos intimamente unidos a Deus. Por mais que nos esforcemos
não chegaremos a compreender até que ponto é estreita, até que ponto é íntima,
nossa união com Deus.
Jesus se esforçou,
particularmente na noite da Ceia, para explicar-nos esta união que temos com
ele: “Eu sou a videira, vós sois os ramos; os ramos não podem produzir fruto se
não estão unidos à videira, assim vós, sem mim nada podeis fazer”.
E como se aquela
comparação não fosse suficiente, como não o é, para exprimir a união
estreitíssima que existe entre ele e nós, chegou a comparar a união que tem
conosco com a união inefável que têm entre si as três pessoas Divinas da
Trindade: “Pai – disse na oração sacerdotal, na noite da Paixão –, que todos sejam uma só coisa
como tu e eu somos uma só coisa. Tu em mim, e eu neles, para que todos sejam
consumados na unidade”.
Não há união
comparável a que temos com Deus pela caridade; consideremos, uma a uma, todas as
uniões da terra, são superficiais, são limitadas, não têm a profundidade íntima
que tem a união que temos com Deus pela caridade.
O apóstolo são Paulo
se atreve a dizer: “Aquele que adere a Deus, é um só espírito com ele” (I Cor
6,17).
E visto que estamos
tão unidos e que esta união é mais íntima do que qualquer outra sobre a terra,
é natural que esta união com Deus nos faça penetrar como por doce experiência,
por uma experiência íntima, as coisas divinas.
Permita-se-me ainda
uma comparação muito grosseira, mas que sem dúvida será útil para compreender o
que exprime. Quando temos em nossa boca uma fruta, apreciamos seu sabor muito
melhor do que se lêssemos as descrições que se encontram nos tratados de Botânica:
Que descrição poderia ser comparável ao gosto que experimentamos quando
provamos uma fruta? Assim, quando estamos unidos a Deus e temos dele uma
experiência íntima, isso nos faz conhecer muito melhor as coisas divinas do que
todas as descrições que os eruditos possam fazer e do que todos os livros dos
homens mais sábios.
O conhecimento dos
Dons é um conhecimento que se adquire por conaturalidade e por experiência
íntima, em virtude da união estreitíssima que temos com Deus.
Mas se é certo que
isso se verifica em todos os Dons, de maneira especial se verifica no Dom da
Sabedoria; é próprio deste Dom fazer-nos conhecer a Deus e as coisas divinas
por uma íntima e doce experiência de amor. Por isso diz são Dionísio falando de
Hieroteu: “Hieroteu é perfeito nas coisas divinas, porque não só as aprende,
mas as experimenta”.
Experimentar as coisas
divinas, saboreá-las no íntimo do nosso coração é por este gosto e experiência
julgar de todas as coisas, tal é o que realiza em nossas almas o Dom da
Sabedoria.
Mas quero explicar por
que esta doutrina da conaturalidade e da experiência se aplica, de maneira
singular, ao Dom da Sabedoria.
Pela caridade – essa
virtude rainha, essa virtude suprema, que é a forma de todas as virtudes, o Dom
mais precioso que recebemos de Deus depois da graça –, pela caridade nos unimos
a Deus e esta união tem muitos aspectos: unimo-nos a Deus como ao motor e ao
diretor das nossas almas, como ao único fim das nossas ações, como ao objeto
que experimentamos e que saboreamos; mas daqui resultam diversas maneiras de
perceber a Deus.
No capítulo anterior
expliquei como o Dom do Entendimento orienta para Deus como o fim último do
homem; penetra nas verdades sobrenaturais pela adequada avaliação do fim. Cada
Dom tem sua maneira própria de tocar a Deus.
Mas, sabemos como o
Dom da Sabedoria toca a Deus? Toca-o como a Bondade infinita, saboreada e
experimentada. Há uma analogia notável entre o objeto da caridade e o objeto do
Dom da Sabedoria; o objeto da caridade é Deus em si mesmo, em sua bondade; o
objeto do Dom da Sabedoria é essa mesma bondade, mas enquanto experimentada,
saboreada.
Por isso, este Dom da
Sabedoria tem uma relação estreitíssima com a caridade, é um Dom que brota da
caridade e que conduz à caridade. Brota da caridade, porque o que possui o Dom
da Sabedoria conhece porque ama; e se for permitido empregar a frase de um
místico – já sabemos que a linguagem dos místicos é audaz, mas é brilhante e
expressiva –, direi que pelo Dom da Sabedoria, “vemos pelos olhos do amado”,
pelos olhos de Deus.
A expressão é audaz,
mas exprime a realidade. Se pudéssemos entrar dentro de Deus e olhar pelos seu
olhos, que veríamos? Veríamos as coisas à maneira divina; assim são vistas as
coisas pelo Dom da Sabedoria, são vistas em Deus, são vistas a partir dessa
atalaia excelsa.
Mas podemos penetrar
em Deus, ver por seus olhos e olhar por sua mente, porque a caridade nos uniu
estreitamente com ele, porque aderimos a ele e formamos com ele um só espírito.
(I Cor 6,17).
O Dom da Sabedoria que
brota da caridade também conduz a ela; a luz deste Dom não é fria e inerte,
como costuma ser a luz da sabedoria humana, mas é ardente e vital, como o raio
de sol, que em sua essência sutil funde a luz, o calor e a energia. A luz do
Dom da Sabedoria inflama de amor o coração e, desta forma, volta ao princípio
do qual emanou e consuma o círculo divino.
Poderia parecer
estranho que o Dom da Sabedoria, que como todos os Dons intelectuais tem que
fundasse na fé, supera seu próprio fundamento, porque os conhecimentos que
podemos ter pelo Dom da Sabedoria, embora estejam dentro do campo da fé,
excedem de maneira incrível o conhecimento da fé. Como é possível que a
Sabedoria supere o seu próprio fundamento?
Se penetrássemos na
natureza da inteligência e da vontade, poderíamos encontrar o segredo dessa
aparente anomalia. Ensina santo Tomás de Aquino que é melhor conhecer do que
amar as coisas inferiores a nós, mas é melhor amar as coisas que são superiores.
Com relação a Deus, é
melhor amá-lo do que conhecê-lo; porque o conhecimento faz com que as coisas
venha a nós e se adaptem à nossa maneira de ser; mas o amor, que é a caridade,
nos faz sair de nós mesmos e nos lança no objeto amado.
Quem ama se assemelha
à coisa amada; quem conhece, adapta a coisa conhecida à sua própria maneira de
ser. De sorte que quando se trata de coisas inferiores as elevamos quando as
conhecemos, porque lhes damos o nosso próprio modo de ser; mas quando amamos as
coisas inferiores, nos diminuímos. Ao contrário, quando conhecemos as coisas
superiores, diminuímo-las, de certa forma, para que se adaptem à nossa
inteligência; mas quando as amamos, elevamo-nos até elas.
Por isso, nesta vida,
é melhor amar a Deus do que conhecê-lo, e por isso é mais perfeito o amor a
Deus pela caridade do que o conhecimento pela fé. Neste mundo, o conhecimento
sempre tem deficiências; o amor, ao contrário, que é um presente do Espírito
Santo, uma imagem sua, tem maior perfeição mesmo neste mundo.
A caridade na terra
não difere da caridade no céu, é essencialmente a mesma, ao passo que a fé se
detém nos umbrais da eternidade para que a visão venha substituí-la. Por isso
não é raro que a caridade supere o seu fundamento e que por meio dela tenhamos
um conhecimento mais amplo, mais profundo e, se se pode dizer, mais divino, do
que a fé.
Na verdade, o campo do
Dom da Sabedoria é vasto, vastíssimo; inclui todas as coisas que a fé abarca as
coisas divinas e as coisas humanas que caem sob a fé, que foram reveladas, a
sabedoria inclui tudo. Já citei a palavra do apóstolo são Paulo: “O Espírito perscruta
tudo”. O homem espiritual julga todas as coisas, nada escapa de sua perspicácia
e de sua sabedoria sobrenatural.
Mas seu objeto
próprio, seu objeto primário, é Deus; os olhos da sabedoria mergulham na
divindade pela contemplação. E porque contemplam o divino, permita-se-me que
repita a mesma expressão, veem pelos olhos do Amado, e daquela excelsa atalaia
descobrem todas as coisas que devemos conhecer na ordem sobrenatural.
Este Dom da Sabedoria
é o mais alto de todos os Dons e dirigem a todos; é um Dom altíssimo. O Dom do
Entendimento é dirigido pela sabedoria, e por isso forma o primeiro par na
enumeração de Isaías de que falei num dos primeiros capítulos. Diz o profeta
que da raiz de Jessé sairá um ramo e desse ramo nascerá uma flor, e sobre essa flor
descansará o Espírito de Deus, o Espirito da Sabedoria e do Entendimento, o
Espírito do Conselho e da Fortaleza, o Espírito da Ciência e da Piedade, e o
encherá o Espírito do Temor de Deus,
No primeiro dos pares
enunciado por Isaías estão a Sabedoria e o Entendimento, porque a Sabedoria é
um Dom diretor até mesmo do Dom do Entendimento, é o Dom supremo que exerce seu
influxo sobre todos os Dons, repito; é como que o cume onde pode chegar o
conhecimento humano.
Este Dom da Sabedoria
tem uma importância capital na contemplação sobrenatural. O Dom do Entendimento
certamente influi na contemplação, porque purifica a alma para que possa
contemplar as coisas divinas e penetrar na verdade da fé, e por essas duas
operações preparo o terreno, por assim dizer, para o Dom da Sabedoria.
O Dom da Sabedoria é o
Dom supremo da contemplação; por ele nossa alma se eleva ao ponto mais alto que
se possa subir; mais o que o Dom da Sabedoria, somente o céu, a visão
beatífica.
Ensina-nos os teólogos
que pelo Dom da Sabedoria se chega a contemplação mais perfeita de Deus e que
este Dom é a característica das altas etapas da vida espiritual; é, poderíamos
dizer, o Dom dos santos; não porque somente eles o tenham; graças a Deus,
repito, desde o dia do nosso batismo possuímos todos os Dons; mas embora
possuamos todos os Dons, nem sempre eles alcançam seu perfeito desenvolvimento,
por nossa culpa, ou ao menos, por nosso descuido.
Todos os homens temos
as mesmas faculdades, e acaso não vemos muitos ignorantes que jamais cultivaram
suas faculdades intelectuais? Desenvolveram seus músculos, têm uma força
material poderosa; mas descuidaram o desenvolvimento da inteligência. Assim
existem muitas almas que descuidam o desenvolvimento destes Dons magníficos que
receberam da mão munificente e santificadora de Deus.
Os santos, os que
chegaram ao cume da perfeição, possuem de maneira perfeita todos os Dons, mas
de modo particular o Dom da Sabedoria.
E esse Dom produz em
nós a semelhança, por assim dizer, mais perfeita com Jesus Cristo. Não nos lembramos
daquela frase misteriosa de são Paulo: “Nós todos que, com o rosto descoberto,
refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transformados nessa mesma
imagem, cada vez mais fúlgida” (II Cor 3,18).
Essa sucessão de luz,
essa série de claridade, pelas quais a alma vai se transformando em Jesus
Cristo, é o processo do Dom da Sabedoria. Quando este alcança na alma seu
perfeito desenvolvimento, então a alma tem a imagem de Jesus, essa imagem é a
sabedoria criada, reflexo da Sabedoria infinita, como a caridade é o reflexo do
Espírito Santo.
Por isso a sétima
bem-aventurança é fruto do Dom da Sabedoria: “Bem-aventurados os pacíficos
porque eles são filhos de Deus”. Esta paz é produzida pelo Dom da Sabedoria;
este Dom produz aquela paz de que fala o apóstolo Paulo: “A paz de Deus, que
supera todo o conceito” (Fl 4,7). Uma paz que supera tudo o que nós podemos
´perceber pelos nossos sentidos, uma paz que está acima de toda a paz humana.
Este olhar divino com
que se contempla o mundo vem produzir em nossa alma uma paz profunda, uma paz
imperturbável.
As almas que possuem
de maneira perfeita o Dom da Sabedoria são os pacíficos, e eles são os filhos
de Deus, têm a adoção perfeita, a filiação consumada, porque a sabedoria gravou
em suas almas a imagem mais perfeita que se pode ter sobre a terra do Filho de
Deus.
É claro que neste Dom,
como todos os demais, existem graus. O primeiro grau do Dom da Sabedoria – que
se possui a partir do momento em que se tem o Dom – faz-nos aderir a Deus, e
por aderirmos a ele temos um juízo reto, uma retidão sobrenatural para julgar
das coisas divinas e, ao mesmo tempo, por esse primeiro grau dispomos de normas
divinas para regular nossas ações e operações.
No segundo grau
chegamos a ter o gosto, um sabor especial pelas coisas divinas. Não nos
lembramos daquelas palavras de são Paulo que a Santa Igreja nos repete durante
o tempo Pascal: “Uma vez, pois, que ressuscitastes com Cristo, procurai as
coisas lá de cima, onde Cristo está assentado à direita de Deus” (Cl 3,1-2).
Saboreai o que é de
cima! Saborear as coisas divinas é próprio do Dom da Sabedoria. Poderíamos
empregar esta expressão por analogia com os sabores materiais. O Dom da
Sabedoria nos dá um sabor, um gosto pelas coisas divinas.
E pela suavidade e
pelo gosto que experimentamos nas coisas divinas chegamos a desprezar as
satisfações humanas. Vemos isto nos santos. Santa Teresa do Menino Jesus não
pediu a Deus que lhe pusesse uma gota de amargura em todas as satisfações da
terra? Parece incrível que se faça semelhante pedido; geralmente desejamos
exatamente o contrário; que Deus ponha em tudo uma gota de mel, que em todas as
coisas da nossa vida, até em nossos sofrimentos, haja uma gota de doçura. Santa
Teresa de Lisieux pedia a Deus que não lhe permitisse saborear nenhuma das
satisfações humanas.
É que depois de
saborear as coisas divinas desprezam-se as coisas humanas; como esses paladares
delicados que se acostumaram a manjares finos já não podem apreciar os
alimentos comuns; assim não se pode apreciar as coisas da terra depois de
experimentar o sabor íntimo das coisas divinas.
Mas há também outro
efeito muito próprio do Dom da Sabedoria: faz-nos conhecer os tesouros da dor e
faz-nos sentir um desejo vivíssimo dela. Já disse que para conhecer e amar a
dor temos o Dom da Ciência, mas é ainda mais profundo o conhecimento que se tem
da dor pelo Dom da Sabedoria e mais vivo o desejo de sofrer.
Todos os santos que
quiseram sofrer e que estavam impacientes por sofrer o martírio fizeram-no sob
o influxo do Dom da Sabedoria: Santo Inácio de Antioquia que disse: “Sou trigo
de Cristo e é necessário que eu seja triturado pelos dentes das feras para
converter-me em pão imaculado”; santa Teresa que dizia: “Ou sofrer ou morrer”;
santa Maria Madalena de Pazzis que afirmava: “Não morrer, mas padecer”. Todos
esses desejos parecem estranhos, parecem anormais, parecem loucuras, quando não
se compreendem sua razão profunda.
À luz do Dom da
Sabedoria, é tão bela a Cruz! É tão doce a dor! Tem algo de divino, tem algo de
Jesus, é a escada reta e luminosa por onde se sobe aos céus. Onde está a dor,
está a cruz impregnada de amor, e das entranhas da dor brota a perfeita alegria
que são Francisco de Assis nos ensinou maravilhosamente.
Para entender essas
coisas é necessário o Dom da Sabedoria. O homem animal não percebe as coisas
divinas, diz são Paulo; o homem espiritual julga todas as coisas. Quando o Dom
da Sabedoria se desenvolveu em nós, por meio dele o Espírito Santo nos faz
penetrar nas riquezas da cruz, nas maravilhas da dor, e então a desejamos com
todas as forças da nossa alma, com todos os anelos do nosso coração.
Nos altos graus do Dom
da Sabedoria, as almas já vivem uma vida celestial, parece que começam a
saborear as delícias do Amado, já não querem olhar para nenhuma das coisas da
terra, já veem todas as coisas em relação à Pátria. É o que dizia são Bernardo:
“Quando escreves, teu relato não tem para mim nenhum sabor se ali não estiver o
nome de Jesus. Uma conferência ou uma conversa não me agradam, se meus ouvidos
não escutam o nome de Jesus. Jesus é mel para os lábios, melodia para os
ouvidos, júbilo para o coração” (Homil., 15 in Cant.). Via tudo em relação a
Deus, via tudo em relação ao céu.
Essas almas começam a
contemplar algo de Deus desde esta terra, olham todas as coisas com os olhos do
amado, e contemplam o universo desde a excelsa atalaia da Divindade.
Concluí a exposição
que ofereci dos Dons do Espírito Santo. Não sei se acertei em dar alguma ideia,
ainda que vaga, destas maravilhas de Deus; mas estou certo de que a exposição
que fiz, se não encheu de luz o nosso espírito, pelo menos encheu de
inquietação a nossa alma. Sentimos a inquietação daquele que pressente outro
mundo melhor, a inquietação daquele que não consegue compreender as coisas, mas
as vislumbram.
Estou certo de que a
exposição que fiz nestas páginas servirá para que compreendamos que há um mundo
desconhecido, que há um mundo divino, cheio de riquezas e impregnado de doçura,
que há um mundo mil vezes superior, mil vezes mais belo que este mundo prosaico
em que vivemos, um mundo para o qual
fomos criados.
Porque não fomos
criados para este mundo miserável nem para acumular as riquezas que o ladrão
nos pode arrebatar e que a ferrugem consome, nem para embriagar-nos com as
coisas da terra, nem para desfrutar dos prazeres terrenos, às vezes tão vis,
sempre imperfeitos, incapazes de saciar o nosso coração imenso. Não, nascemos
para um mundo superior. para um mundo oculto, para um mundo que trazemos escondido em nossa alma.
Sentir-me-ei
satisfeito se tiver levado alguém a pressentir esse mundo divino, se tiver
deixado uma inquietação nos corações, se ao menos, depois de minha exposição
pudermos dizer: existe algo maior do que aquilo que os nossos sentidos, existe
um mundo superior, um mundo dos santos para o qual todos somos chamados. E
trazemos dentro do coração realidades sobrenaturais com as quais podemos
escalar os cumes e contemplar belíssimos panoramas, e assim aproximar-nos da
luz de Deus.
Que o Espírito Santo,
cuja moção nos ensina todas as coisas, segundo a frase da Escritura, complete a
exiguidade da nossa obra, que ele comunique às nossas almas a sua luz, para que
olhemos para o alto e os nossos corações se encham com o fogo santo do amor, e
suspiremos por aquilo que é grande, divino e eterno!
Do livro “Dons do
Espírito Santo” da autoria de D. Luís M. Martinez - Arcebispo Primaz do México – Apresentação:
Pe. Haroldo J. Rahm. SJ. Edições Paulina 1976.
Estas nove (9) páginas
riquíssimas do Amor de Deus , que colocamos no blog “Poço de Jacó”:
- Noções Gerais – Dom
do Temor de Deus – Dom de Fortaleza – Dom de Piedade – Dons Intelectuais – Dom
do Conselho – Dom da Ciência – Dom do Entendimento – e Dom da Sabedoria.