sexta-feira, 28 de junho de 2013

Espírito Santo - Dom do Conselho

                                                            Dom do Conselho

   Os teólogos dizem que Deus não fala no necessário nem abunda no supérfluo, porque fez todas as coisas com número, peso e medida; em todas elas brilha sua sabedoria perfeita e infinita; cada um dos seres criados por Deus se for estudado cuidadosamente, é uma maravilha. Acaso nosso organismo não é uma maravilha estupenda? Quanto mais o estudamos e o conhecemos, mais se descobrem nele leis sapientíssimas, órgãos para todas as necessidades, atividades múltiplas, recursos verdadeiramente prodigiosos.
   E com maior razão, na ordem sobrenatural Deus não falta no necessário. Com admirável sabedoria dispõe tudo na  ordem espiritual e de certa forma divina; de sorte que não há campo algum da vida espiritual em que Deus não tenha vindo ao encontro das nossas necessidades de maneira verdadeiramente admirável. E como já disse num dos capítulos anteriores, Deus estabeleceu a obra da graça sobre a obra da natureza, de tal sorte que entre as coisas de uma ordem e as de outra há maravilhoso paralelismo, admirável harmonia.
   Em cada uma das formas de atividade que há em nós, Deus providenciou: na ordem natural, com as faculdades e os sentidos; na ordem sobrenatural, com as virtudes e os Dons.
   Já vimos isso no exame rapidíssimo que fizemos até aqui dos Dons do Espírito Santo. Toda forma de atividade que exige uma moção da razão, tem também seu Dom próprio pelo qual o Espírito move daquela forma a atividade conforme às regras altíssimas, imprimindo em nossos atos um modo divino.
   No capítulo anterior falei em geral dos Dons intelectuais, como uma preparação para tratar do primeiro Dom intelectual, do qual vou ocupar-me agora e que é o que está mais próximo dos Dons afetivos, o que dirige os Dons do Temor de Deus, da Fortaleza e da Piedade; refiro-me ao Dom do Conselho.

   Em nossa inteligência há uma forma de atividade profundamente prática. Para fazer uma ação realizamos um processo mental com a finalidade de examinar com cuidado, não só a sua conveniência, sua oportunidade, mas todas as circunstâncias nas quais nos encontramos.
   Geralmente não nos damos conta deste processo, como também não nos damos conta do processo que segue nosso alimento no aparelho digestivo até ser assimilado pelo organismo.
   Precisamente porque estamos habituados a usar a nossa inteligência para regular nossas ações, geralmente passa inadvertido todo o processo  que se desenrola  em nós para chegar a esse fim; mas em certas circunstâncias especiais de nossa vida, quando a ação é mais difícil  ou mais complicada, quando não se vê logo com clareza o que em determinada ocasião deve ser feito, então, por ser aquele processo mais intenso, nos damos conta dele.
   E se examinarmos com atenção, veremos que não é coisa fácil determinar o que se deve fazer nestas circunstâncias; é preciso conhecer minuciosamente as circunstâncias do momento, dar-nos conta da liceidade do ato que vamos praticar, de sua conveniência e oportunidade; e analisamos, refletimos, recordamos o passado para guiar-nos no presenter e até para prever de certa forma o futuro. E quantas vezes, depois de termos refletido muito não chegamos a uma conclusão o que será conveniente fazer em determinado momento, mas recorremos a uma pessoa ilustrada e cheia de experiência para que nos aconselhe o que devemos fazer. Coisa difícil são nossas ações concretas, individuais, sobretudo em certas ocasiões, em certas circunstâncias,
   Por isso, para poder determinar com exatidão  o que em cada passo particular deve ser feito, existe na ordem natural a prudência, e na ordem sobrenatural uma virtude infusa que tem o mesmo nome.
   A prudência não é conhecimento especulativo das coisas ordinárias espirituais; é a aplicação desses conhecimentos e desses princípios gerais aos casos concretos, com as circunstâncias de tempo, de lugar, de modo etc. A virtude da prudência é uma virtude difícil, e não falemos da prudência de que se necessita para dirigir os outros, mas mesmo desta prudência que é indispensável para dirigir-nos a nós mesmos.
   É coisa difícil, porque, ao mesmo tempo em que devemos olhar para cima, para agir de acordo com princípios e regras muito elevadas, precisamos dar-nos conta de todas e de cada uma das circunstâncias que cercam o ato que vamos realizar; é coisa difícil principalmente nos casos em que devem intervir diversas virtudes.
   Imagino a prudência como o regente de uma grande orquestra com múltiplos instrumentos; cada um produz determinada melodia, e o regente deve assinalar com sua batuta o momento em que cada um deve entrar, os matizes que deve dar a cada melodia etc. Numa palavra, deve reger o conjunto e estabelecer a harmonia entre todos os instrumentos para que formem um todo unido e harmonioso.
   Assim imagino a prudência; a prudência dirige, de certa forma, as demais virtudes, determina para cada uma delas sua oportunidade, seu grau, seu matiz e diz como o homem deve empregá-la. E assim a prudência deve realizar uma harmonia maravilhosa em nossa vida: é, pois, uma virtude profundamente estética.
   Mas nesta matéria, como em todas as demais da vida espiritual, a virtude não basta, tem suas deficiências, por que tem um modo humano. Quantas vezes já repeti esta diferença que existe entre as virtudes e os Dons! As virtudes, regidas pela razão, trazem o seu selo, selo de imperfeição; os Dons, manejados pelo Espírito Santo, têm um selo divino, um selo de perfeição.
   Tratando da prudência, em outro capítulo citei as palavras da Escritura que com duas palavras nos dá a conhecer as imperfeições da prudência humana: “Os pensamentos dos mortais são tímidos e incertos”. Timidez e incerteza, estes são os caracteres da prudência que é apenas virtude.
   Como é difícil unir prudência e audácia! Há homens audazes, mas que se esquecem da retidão da prudência; há homens que parecem prudentes, mas que têm uma prudência tão limitada e tão tímida que não se atrevem a levar a cabo empreendimentos audazes que deveriam realizar.
   Os propósitos humanos são tímidos, como é próprio de um ser imperfeito que não consegue prever o futuro, que não pode examinar profundamente o presente, que tem dificuldade em aplicar os conhecimentos do passado para assegurar o presente e o futuro.
   E, ao mesmo tempo, nossas providências são incertas, e em qualquer assunto, singularmente nas coisas espirituais, como é difícil chegar à firmeza e à segurança! Dispomos e regulamos as coisas sem ter certeza de que alcançaremos o fim desejado; nossas providências são incertas, dependem da sorte, podem dar certo ou não.
   Tais são os caracteres da prudência humana: timidez e incerteza.
   Por isso não seria suficiente a prudência humana, e a própria prudência sobrenatural não bastaria para conduzir-nos às alturas da glória. A vida humana é tão complicada, tão difícil, são tão tortuosos os caminhos pelos quais devemos chegar à perfeição! Encontramos tantos sofrimentos, tantas dificuldades, tantas contrariedades em nossa vida, que se não tivéssemos outra direção a não ser a nossa pobre prudência, não conseguiríamos chegar ao termo!
   Mas Deus, que não falta ao necessário, nos dá um Dom; e por ele o Espírito Santo se converte em nosso guia e, da mesma forma que o Arcanjo Rafael conduziu Tobias em sua longa peregrinação, o Espírito Santo que habita em nossas almas nos guia pelos caminhos tortuosos e complicados da vida, até alcançarmos nossa perfeição no seio inefável de Deus.
   Essa prudência superior e divina, essa prudência que é fruto de uma moção do Espírito Santo, é o que se chama o Dom do Conselho.
   Notemos que não conserva o mesmo nome da virtude; na Fortaleza sim, a virtude e o Dom têm o mesmo nome: virtude da Fortaleza, Dom da Fortaleza; mas a prudência virtude e a prudência Dom, recebem nomes diferentes. O Dom, especialmente nas Escrituras, tem o nome de Conselho.
   E isso se explica, porque essa prudência que recebemos com esse Dom, não é uma prudência que brota, por assim dizer, das profundidades da nossa inteligência; é uma prudência que nos vem de cima, que nos vem de um ser superior; é o Espírito Santo que no-la comunica. Assim como quando não sabemos o que fazer em determinado caso, perguntamos a uma pessoa mais esclarecida para que nos aconselhe assim o Espírito Santo, por este Dom, nos aconselha.
   Mas o seu conselho não é um conselho passageiro como os conselhos humanos; por ele, o Espírito Santo nos move e nos guia de maneira segura, sem timidez nem incerteza, pelos tortuosos caminhos que nos conduzirão à Divindade.

   Compreende-se outra diferença que existe entre a prudência virtude e o Dom do Conselho: a prudência é regida pela razão, o Dom do Conselho, movido pelo Espírito Santo. A prudência põe um modo humano em nossos atos, a incerteza e a timidez; o Espirito Santo põe um modo divino nos atos que procedem do Dom do Conselho.
Quanto a terceira diferença, quero explicá-la mais pormenorizadamente: a virtude e o Dom têm regra diferentes.
   A norma da virtude é a reta razão iluminada pela fé; o que a reta razão iluminada pela fé nos ensina vem servir-nos de norma para que saibamos se nesses precisos momentos devemos fazer tal ou tal ação. A norma do Dom é uma norma mais alta, é divina, é a razão eterna que é norma de Deus.
   Esforçar-me-ei para explicar essa diferença; podemos ver isso na prática: os santos chegaram, às vezes, a fazer coisas que nos enchem de estupor. Santa Catarina de Sena não passava Quaresmas inteiras sem tomar outra coisa a não ser a Sagrada Comunhão? Diante da prudência humana, isto não se pode justificar; a reta razão nos pede que levemos ao noesso organismo o alimento necessário; mas, ao mesmo tempo, não tolera as deficiências na mortificação. É preciso procurar o meio termo da virtude. Mas santa Catarina de Sena fazia esta obra admirável por um instinto superior, por uma norma divina; não via a regra da razão; via a regra altíssima da vontade de Deus.
   Imaginemos que pudéssemos participar da Mente divina para descobrir naquele espelho infinito de luz o que convém fazer em cada caso; assim como aqui na terra, às vezes, quando perguntamos a uma pessoa erudita e experimentada o que devemos fazer em determinado caso, poderíamos dizer que participamos de sua inteligência, profunda e ilustrada, para encontrar ali a norma daquilo que vamos fazer.
   É o que acontece com o Dom do Conselho: por ele o Espírito Santo nos comunica o que devemos fazer em cada momento da nossa vida, como se participássemos da Mente divina e ali, naquele esplêndido e celestial, víssemos as chaves as chaves das nossas ações, a norma de acordo com a qual devemos dispor os nossos atos.
   E é natural que quando agimos sob o regime do Dom do Conselho, nossas ações sejam rápidas, seguras e audazes. Com que audácia procedem os santos, com que segurança, com que rapidez! É que não são aconselhados pelos homens, não seguem o ditame de sua razão e têm uma norma mais alta: é a razão eterna, é a Mente de Deus que ilumina seus espíritos e que lhes determina o caminho que devem seguir.
   Se quisermos um exemplo vivo do que é um homem dirigido pelo Dom do Conselho, temos são Francisco de Sales, o santo da discreção. Tomou como lema a forma da prudência: “Nem mais nem menos”. Este era o lema de seu escudo episcopal. O termo médio da prudência, a harmonia perfeita foi seu caráter, foi seu selo. Mas para poder chegar a ser o santo da discreção, estejamos certos de que não bastou a prudência humana, mas foi necessária uma prudência superior, o Dom do Conselho.
   E em muitíssimos atos dos santos poderíamos encontrar o influxo, o vestígio do Dom do Conselho.    Como é que, por exemplo, são Vicente Ferrer teria podido realizar os milagres com a naturalidade com que os realizava se não fosse guiado pelo Dom do Conselho?
   Tinha até fórmula para fazer milagres; e assim como em nossas fórmulas deixamos um vazio para enchê-lo com aquilo que se trata de fazer, assim o santo dizia algumas palavras do Evangelho, era a sua fórmula, e depois acrescentava: Em nome de Jesus Cristo, esteja curado, ressuscitado, anda, ou qualquer outro milagre que queria realizar; e fazia-os sem dar-lhes muita importância.
   Se alguém de nós quisesse imitar são Vicente Ferrer e tratasse de fazer milagres, cometeria uma ação inteiramente imprudente. E, contudo, agia dessa forma porque o Espírito Santo o movia, porque estava de maneira singular sob o influxo do Dom do Conselho.

   Neste Dom, como em todos, dão-se graus: No primeiro grau, o homem consegue fazer com rapidez e segurança tudo o que é a vontade de Deus nas coisas necessárias para a vida espiritual. Talvez não seja tão simples ter esta segurança; quantas vezes acontece que é mais difícil conhecer a vontade de Deus do que fazê-la.
   Não nos encontramos muitas vezes em circunstâncias singulares nas quais não conseguimos dizer com precisão qual é nosso dever naqueles momentos? Que é que Deus quer que façamos naquelas circunstâncias?
   Quando conhecemos a vontade de Deus, às vezes nos custa segui-la; mas muitas vezes o trabalho maior é conhecê-la, como já disse. Pelo Dom do Conselho a conhecemos de maneira rápida e segura.
Não há dúvida de que o Dom do Conselho é necessário para dirigir e ordenar todas aquelas ações que brotam dos próprios Dons.
   Os Dons agem simultaneamente em nós, ou melhor, o Espírito Santo nos faz agir simultaneamente por meio dos seus Dons e, em diversas ocasiões, é até indispensável em nossa vida espiritual que cooperem diversos Dons; da mesma forma como em nosso organismo, onde quase sempre há necessidade da cooperação de muitos órgãos, e em nossa alma de muitas faculdades para determinada ação. Mas neste mundo dos Dons, as ações que procedem deles devem ser regidas pelo Dom do Conselho.
   Mas o Dom do Conselho influi também nas ações comuns da nossa vida, aquelas que são regidas pela virtude ordinária da prudência. Assim como numa batalha, o general tem a seu cargo um setor especial da batalha, age com liberdade naquele setor, mas recebe as ordens de outro chefe mais alto, assim a virtude da prudência rege nossas ações, mas recebe o influxo e a direção de outro árbitro sobrenatural mais excelente que é o Dom do Conselho.
No segundo grau o Dom do Conselho nos mostra a vontade de Deus, o caminho que devemos seguir, não somente nas coisas necessárias da vida espiritual, mas também nas coisas de conselho, nas coisas que não são absolutamente obrigatórias, mas que são muito convenientes e úteis para levar-nos a Deus.
No terceiro grau, o homem como que se levanta da terra e vive num mundo superior; a mão de Deus o guia com segurança, sem tropeços, sem timidez e o homem vai caminhando pelas sendas que nosso Senhor lhe determina até chegar ao cume da perfeição a que Deus o chamou.

Ditosas as almas que são guiadas pelo Espírito Santo em suas ações! Que paz, que segurança, que tranquilidade nestas almas! Não têm as incertezas da vida humana!
   Não é verdade que uma das maiores misérias desta vida são as nossas incertezas? A cada passo encontramos uma dificuldade, como já disse o sábio: “Todas as coisas são difíceis”. A cada passo nos encontramos com dificuldades; como sair delas? Que é que devemos fazer nestes momentos?
   A Escritura nos diz que há tempo para falar e tempo para calar; devo falar ou devo calar neste momento?  Há tempo para gozar e para sofrer. Como saber com exatidão o que corresponde a este minuto do meu tempo? Quantas incertezas em nosso vida, quantas hesitações, sobretudo quando temos o espírito reto e quando não queremos desviar-nos dos caminhos estabelecidos por Deus.

   Torno a dizê-lo: felizes as almas que são conduzidas pelo Espírito Santo no meio das vicissitudes da vida, entre os tortuosos caminhos da terra! A mão de Deus as guia de maneira segura e trazem em seu coração a tranquilidade e a paz, porque trazem a luz, porque o Espírito Santo as move, porque vão, por assim dizer, sob a sombra de suas asas caminhando triunfantemente pelas sendas da vida que hão de leva-las à doce eternidade. 

Do Livro:  Os Dons do Espírito Santo - Autoria: Luís M. Martinez - Arcebispo Primaz do Mexico.
Apresentação: Pe. Haroldo J. Rahm  SJ. - Edições Paulinas - 1976

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Espírito Santo - Dons Intelectuais

Os Dons Intelectuais

   Vimos, nos capítulos anteriores, como os três primeiros Dons do Espírito Santo pertencem à parte afetiva do nosso ser; os dois primeiros, o Dom de Temor de Deus e o Dom de Fortaleza, regem a nossa sensibilidade, o Dom da Piedade dispõe a nossa vontade para que tenhamos dignas e santas relações com os demais.
   Os quatro Dons do Espírito Santo de que me resta falar, são Dons intelectuais; esses quatro Dons têm por finalidade aperfeiçoar a nossa inteligência e introduzir-nos profundamente no conhecimento sobrenatural.
   À primeira vista, pode causar estranheza que a maior parte dos Dons sejam intelectuais, mas compreenderemos o motivo disso se nos dermos conta da importância que tem a inteligência humana em nossa vida.
   Em primeiro lugar, é a faculdade mais alta, é a que rege todas; a própria vontade, que tem tanta importância, sobretudo na ordem moral, está sujeita à inteligência. Portanto, se esta faculdade excelsa deve reger as demais faculdades, é natural que seja especialmente excitada e aperfeiçoada pelas santas moções do Espírito Santo.
   Em segundo lugar, o conhecimento sobrenatural tem uma importância capital na vida cristã. Não nos lembramos de que Jesus disse em certa ocasião? “Nisto consiste a vida eterna: que te conheçam a ti, único verdadeiro Deus, e aquele que enviaste, Jesus Cristo?” (Jo 17,3). Também a parte essencial da vida espiritual está no conhecimento de Deus, no conhecimento de Jesus Cristo e no conhecimento de todos os mistérios do Reino dos Céus. Tem uma importância capital, na vida espiritual, contemplar as verdades divinas, aprofundar os mistérios do Reino dos Céus, sobretudo quando esse conhecimento é profundo, íntimo e eficaz.
   E até a imperfeição da virtude teologal da fé, que é obscura, explica que muitos Dons venham, por assim dizer, em auxílio dela, para suprir as nossas deficiências, para robustecê-la em nossa alma.

   Antes de tratar de cada um destes Dons, quero assinalar os caracteres gerais deles.
   Os Dons intelectuais são quatro, como já disse desde o princípio, que correspondem perfeitamente aos hábitos que, segundo os filósofos, existem em nossa inteligência, porque, como santo Tomás de Aquino o expôs de maneira admirável, “a graça se fundamenta na natureza”.
   A uma correspondência, um paralelismo maravilhoso entre as coisas espirituais e as coisas humanas, visto que a natureza e a graça têm a mesma fonte e emanam do mesmo princípio. Deus, que formou a nossa natureza, é também o autor da graça; e como faz tudo admiravelmente, adaptou com perfeição as coisas espirituais às exigências legítimas e nobre da nossa natureza humana.
   Em nossa inteligência existem os primeiros princípios, que são à base de toda consciência; a ciência, que é conhecimento das coisas por suas causas; a sabedoria, que é uma ciência mais profunda que descobre as causas altíssimas e últimas das coisas; e a prudência, que aplica todos os princípios especulativos à ordem prática, à direção das nossas próprias ações individuais.
   E a estes quatro hábitos que existem na ordem natural, correspondem admiravelmente os quatro Dons intelectuais do Espírito Santo; o Dom do Entendimento, o Dom da Ciência, o Dom da Sabedoria e o Dom do Conselho.
   Mas, como já disse, antes de falar de cada um deles, devo assinalar os caracteres gerais destes Dons intelectuais.

   Em primeiro lugar, nesta vida todos os Dons intelectuais se fundamentam na fé.
Já sabemos o que é a fé: uma virtude pela qual conhecemos tudo o que Deus nos revelou, fundando-nos em sua autoridade divina; é a luz que ilumina os caminhos do desterro; é como a lamparina, diz o apóstolo são Pedro, que brilha num lugar tenebroso, enquanto chega o dia esplêndido da glória, enquanto aparece em nossas almas o esplendor da manhã.
   Nesta vida, nós nos guiamos pela fé, e embora os Dons do Espírito Santo tornem mais brilhante e mais profundamente conhecidas as verdades da fé, porque as iluminam com esplêndidos fulgores, no fundo, a luz que serve de base aos Dons intelectuais para o conhecimento sobrenatural é sempre a luz da fé
   Vem-me à mente uma comparação: a ciência pode fazer dos raios do sol muitas aplicações; pode concentrá-los, combiná-los, pode separar os diferentes elementos que os compõem, pode fazer com os raios do sol grandes maravilhas; mas, no fundo de todas estas experiências há uma só realidade, a luz do sol.

   De maneira semelhante, os Dons do Espírito Santo multiplicam, afinam, transforma a luz espiritual da fé, mas sempre é a mesma luz que irradia em todos os conhecimentos sobrenaturais, é sempre a fé que, qual lamparina na terra, nos alumia enquanto chega o dia esplêndido da eternidade.
   Às vezes Deus deixa cair, como centelhas divinas, nas almas a luz da profecia, mas é algo raríssimo que só se encontra em almas escolhidas e que têm uma missão extraordinária. A luz da vida espiritual é a luz da fé, e os Dons do Espírito Santo fundamentam-se nela.
   No céu os Dons do Espírito Santo continuarão, mas naquela morada felicíssima não será a fé, mas será a visão beatífica, a visão esplendida da pátria que servirá de fundamento aos Dons do Espírito Santo; mas na terra, repito, todos os Dons intelectuais se fundamentam na fé e servem precisamente, como já disse antes, para corrigir as deficiências e para descobrir-nos a profundidade dos mistérios divinos.
   Pela fé conhecemos todas as verdades reveladas; mas pelos Dons do Espirito Santo penetramos, por assim dizer, no fundo destas mesmas verdades.
   Atrever-me-ei a fazer uma comparação, fazendo notar que se tratando das coisas divinas, as pobres comparações humanas são sempre deficientes.
Quando uma pessoa que é ignorante numa ciência recebe algum ensinamento relativo à esta ciência dos lábios de um homem que a conhece profundamente e cuja probidade intelectual está fora de dúvida, tal pessoa aceita a verdade que se lhe propõem; não as penetra, mas dá-lhes seu assentimento pela autoridade daquele profissional, daquele mestre.
   Mas, se depois de tê-las conhecido pela autoridade do mestre, essa pessoa pode penetrar a fundo estas verdades, analisa-las e descobrir seus diversos aspectos e suas causas, então já não tem somente a firmeza de sua autoridade para aderir àquelas verdades, mas também pôde penetrar nelas por sua própria inteligência.

   Assim acontece na ordem sobrenatural, pela fé conhecemos todas as verdades que Jesus Cristo quis revelar-nos, conhecemos os mistérios do Reino dos Céus, sabemos tudo de que temos necessidade para a nossa salvação; e o sabemos pela autoridade de Deus, pela autoridade da Santa Igreja estabelecida por Jesus Cristo. Mas, quando por meio dos Dons do Espírito Santo penetramos nestas verdades da fé, então passamos a entendê-las, descobrimos a sua profundidade, apreciamos a harmonia que existe entre umas e outras, temos um conhecimento íntimo, profundo, destas verdades, embora sem que jamais se chegue à evidência objetiva, porque nesta vida a fé nunca perde a sua misteriosa obscuridade.

   Que diferença entre o conhecimento que temos pela simples fé, e o conhecimento que tem a alma quando está sob o regime dos Dons intelectuais d1o Espírito Santo!
   Recordamo-nos de são Francisco de Assis passava noites inteiras repetindo: “Meu Deus e meu tudo?” Estas palavras, para a maior parte de nós, não conseguiriam manter-nos atentos cinco minutos. Por que é que bastava para encher as noites de oração de são Francisco de Assis? Porque ele as via com a luz de Deus, porque os Dons do Espírito Santo lhe revelavam riquezas sobrenaturais em cada uma daquelas duas palavras.
   Pela fé conhecemos as verdades da ordem sobrenatural baseando-nos na autoridade da Igreja; Pelos Dons intelectuais penetramos na profundidade dessas verdades, tendo já, por assim dizer, um conhecimento íntimo delas, embora negativo, como se dirá depois.

   De onde provém este conhecimento mais profundo e mais íntimo que se tem das verdades por meio dos Dons intelectuais do Espírito Santo? É importantíssimo conhecer a explicação desse fenômeno sobrenatural.
   São Tomás de Aquino ensina que há duas maneira de conhecer as coisas: uma é pelo discurso em suas diversas formas; a outra maneira de conhece-las é por uma experiência íntima, porque aquelas coisas não são conaturais.
   O primeiro conhecimento é puramente intelectual; o segundo, por assim dizer, brota das próprias profundidades do amor. Podemos ter o primeiro conhecimento quando lemos livros que nos explicam os mistérios da fé, quando ouvimos os pregadores que explicam estas verdades; é um conhecimento que pode ser mais ou menos amplo, mais ou menos perfeito, mais um conhecimento de pura luz.
   Mas há outro conhecimento que brota do amor, que é próprio das almas que amam.    Porque amam, estão unidos com Deus, e nesta união estreitíssima que o amor realiza, conhecem as coisas divinas por uma doce e íntima experiência delas.
   Este segundo meio de conhecer é próprio dos Dons do Espírito Santo.
   Conta-se que um irmão leigo franciscano disse, em certa ocasião, a são Boaventura, o Doutor Seráfico: “Felizes de vós, homens doutos, que podeis amar a Deus muito mais do que nós, os ignorantes”. E são Boaventura lhe disse: “Não, não é a doutrina, não é a ciência alcançada nos livros que mede o amor: uma pobre velha ignorante pode amar a Deus mais do que um grande teólogo, se estiver unida a Deus”. O irmão logo compreendeu a lição e saiu entusiasmado pelas ruas gritando: Velhinha ignorante, você pode amar a Deus mais do que o Mestre Frei Boaventura!
   E assim é na verdade, há um conhecimento que se mede pelo amor.
   Na ordem natural, o normal e lógico, é que o conhecimento brote do amor; na ordem sobrenatural, ainda que às vezes se observe esta regra de psicologia natural, também do amor nasce a luz, também do amor nasce o conhecimento; aquele que mais ama, mais conhece, e toda história dos santos comprovou isto. Quantas pessoas ignorantes falam que falam das coisas espirituais e divinas melhor do que os letrados! É porque amam, é porque do fundo de seu amor procede ao seu conhecimento.
   Mesmo na ordem natural, o amor é um aguilhão poderoso para o conhecimento; quando amamos uma ciência com entusiasmo, o amor põe em jogo todas as nossas faculdades, fixa a nossa atenção, faz com que sejam mais intensos e frutuosos os esforços que fazemos para conhecer aquela ciência.
   Na ordem natural, uma mãe, já o disse num dos capítulos anteriores, tem conhecimentos intuitivos e maravilhosos sobre os seus filhos, parece que advinha seus pensamentos, parece que vislumbra o mais profundo do seu coração. É que ama, é que o amor estabelece tal proporção, tal harmonia entre os seres que se amam, que parece que são uma só coisa.

   E em virtude dessa harmonia admirável realizada pelo amor, basta, por assim dizer, penetrar em nosso próprio coração para compreender o coração amado.
Mas na ordem sobrenatural, isto é ainda mais perfeito, a caridade, esta virtude divina que enlaça e dá vida a todas as virtudes, une-nos com Deus a ponto de podermos dizer que nos faz uma só coisa com ele: “Aquele que se une ao Senhor constitui, com ele, um só espírito” (I Cor 6,17). A expressão é audaz, mas tem seu fundamento. Em outra ocasião, o mesmo apóstolo são Paulo diz: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
   O amor realiza a união perfeitíssima, e quando a caridade nos une a Deus de tal maneira que nos tornamos um só espírito com ele, então conhecemos as coisas divinas por uma doce experiência.
   Da mesmo forma que nós sentimos o que se passa no fundo do nosso ser, da mesmo forma como não temos necessidades de razões para descobrir os sentimentos íntimos do nosso coração e os pensamentos do nosso espírito, visto que por uma experiência íntima conhecemos o que se verifica em nós mesmos, assim as almas que estão intimamente unidas a Deus pela caridade, têm um conhecimento que brota do amor; conhece-nos por uma doce, por uma íntima experiência, como se encontrassem no fundo do seu próprio ser os elementos necessários para conhecer a Deus.
   Esta é a explicação profunda dos Dons intelectuais; estes Dons nos dão um conhecimento novo, um conhecimento íntimo, às vezes dulcíssimo, das coisas divinas. Por que? Porque as almas que possuem este conhecimento amam; das profundidades do amor, brota a luz, uma luz divina, uma luz celestial.

   Quando são Francisco de Assis passava as noites dizendo: “Meu Deus e meu tudo”, é porque das profundezas brotava a luz esplêndidas dos Dons que ilumina os arcanos de Deus.
   Temos tantos destes exemplos na vida dos santos! Houve santos que pareciam não poderem se afastar do Sacrário, pareciam estar contemplando coisas celestiais, com o seu espírito fixo naquele sacrário onde está Jesus.
   È que amavam, é que do fundo do seu amor brotava a luz esplêndidas dos Dons, particularmente, como direi mais adiante, do Dom da Sabedoria, o mais profundo, e, se assim se pode dizer, o mais divino dos Dons. Mas todos os Dons intelectuais participam deste caráter, todos nos fazem conhecer; por que? Porque amamos. A luz dos Dons do Espírito Santo e a luz que brota do amor.

   Mas não pensemos que os Dons do Espírito Santo nos fazem conhecer a Deus de maneira perfeita, como o conheceremos no céu; os Dons do Espírito Santo aqui na terra, como já expliquei, baseiam-se na fé, e apesar de penetrarem as verdades e de as iluminarem celestialmente, conservam sempre certa obscuridade, que no desterro não desaparecerá nunca. Na Pátria, sem dúvida, os Dons intelectuais, iluminados pela luz da glória, estarão isentos de toda obscuridade e virão completar nossa felicidade.
   Na terra, o conhecimento que os Dons nos dão das coisas divinas, sobretudo do próprio Deus, é negativo; mais do que saber o que Deus é, sabemos o que não é.
   Santo Tomás de Aquino diz que o maior conhecimento que podemos ter de Deus neste mundo é compreender que está acima dos nossos pensamentos e das nossas palavras; saber que nossas pobres forças não conseguem captar perfeitamente a Deus, que Deus é algo maior do que o que podemos exprimir os nossos lábios, maior do que aquilo que nossa inteligência pode conceber; essa é a suprema revelação que podemos ter de Deus.
   Por isso, o conhecimento altíssimo que os místicos têm de Deus é chamado “a treva divina”. É uma obscuridade, mas uma obscuridade mais esplêndida, mais luminosa do que todas as formas da sabedoria da terra.
   Quase não consigo encontrar comparações humanas para exprimir este caráter do conhecimento dos Dons; mas penso que há alguma analogia remota entre o que estou explicando e o que às vezes experimentamos na nossa vida.
   Quando vemos algo grande, algo sublime, não é verdade que não conseguimos definir o que contemplamos o que sentimos, e que precisamente porque é indefinível nosso pensamento, nossa sensação, por isso mesmo é maior?
Quando contemplamos a imensidão do mar, não sentimos uma impressão profundíssima, precisamente porque nem nossos olhos e, talvez, nem nossa imaginação conseguem compreender a imensidão do Oceano?
   Quando, numa noite estrelada, levantamos nossos olhos para o céu e vemos esse espaço imenso onde a distâncias enormes, fantásticas, giram astros colossais, sentimos uma impressão de doce estupor.
É demasiado grande o que vemos, e precisamente por isso nos seduz; se não fosse tão grande, se pudéssemos medir o que vemos, não experimentaríamos a profunda, a sublime impressão do sublime.
   E o mesmo acontece quando contemplamos um traço heroico da ordem moral; enchemo-nos de assombro. E essas grandes impressões do nosso espírito não podemos defini-las, têm algo de negativo; e precisamente porque o têm, enchem-nos, satisfazem-nos, parece corresponder a este desejo de infinito que trazemos no fundo de nossa alma...
   No conhecimento que os Dons intelectuais do Espírito Santo produzem em nosso espirito, não há discurso, mas intuição. O discurso é algo humano, a intuição é algo angélico, ou melhor, algo divino. E pelo conhecimento dos Dons têm-se intuições.
   Há como que um vestígio deste conhecimento na ordem natural; não se diz de um homem que aprofundou uma ciência ou uma arte e que está familiarizado com ela, que tem olho, o olho clínico, o olho artístico? Que outra coisa significa senão que na ordem natural chegou a essa perfeição, a essa altura onde está a intuição? Aquele que tem olho não analisa, não discorre, VÊ, tem uma intuição que lhe faz compreender mais do que pode fazer compreender o discurso.
   E santo Tomás assegura também que na ordem natural há moções de Deus semelhantes às moções do Espírito Santo na ordem sobrenatural; o artista que tem verdadeira inspiração, é movido por Deus, e tem esplêndidas intuições; verifica-se o que dizia um poeta: “Há em nós um Deus e, agitados por ele, sentimos seu calor divino”.
   Na ordem sobrenatural, pelos Dons do Espírito Santo têm-se estas profundas intuições; a alma que está sob o império dos Dons não analisa, não discorre. VÊ, tem intuições; e num ponto, numa intuição, vê maravilhas. O que não conseguiria compreender por uma série de discursos e pela leitura de obras eruditíssimas consegue compreendê-lo no olhar profundo que o Espírito Santo produz nela.
Não é verdade que o mundo espiritual é um mundo de maravilhas? E apenas chegamos aos umbrais deste mundo divino, apenas conseguimos vislumbrar as maravilhas que nele realizam; mas cada vez que nos aproximamos deste muno celestial e que com os olhos atentos vislumbramos os mistérios que há nele, sentimos que é um mundo maravilhoso, que é o mundo divino.
   Prouvera a Deus que vivêssemos nesse mundo, que deixássemos esta pobre terra tão cheia de vicissitudes, de coisas prosaicas, onde a cada passo tropeçamos, onde a cada passo encontramos a dor e a pena. Pudéssemos nós elevar-nos! Quem nos dera essas asas poderosas para elevar-nos das coisas da terra, de suas misérias, de seu prosaísmo, para subir às alturas, para chegar aos cumes excelsos onde se fita o sol e onde o nosso pobre espírito se banha na luz esplêndida de Deus!

 Do Livro: “Dons do Espírito Santo” – Autor: Luís   M. Martinez – Arcebispo Primaz do México.    Apresentação: Pe. Haroldo J. Rahm. SJ.      Edições Paulinas – São Paulo – 1976.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Espírito Santo - Dom da Piedade

Dom da Piedade

    Não há poção do nosso ser à qual não chegue moção do Espírito Santo; não há caso algum de nossa vida espiritual no qual não intervenha o Paráclito com o seu influxo divino, por meio de alguns dos seus dons.
   Nos capítulos anteriores expliquei como o Espírito Santo influi de maneira definitiva na ordenação e disposição de tudo o que se refere à parte interior da nossa alma. Por meio do Dom do Temor de Deus modera as inclinações da nossa sensibilidade, ordena, por assim dizer, nossas faculdades interiores para que nunca possamos afastar-nos de Deus fascinados pelas criaturas; e pelo Dom da Fortaleza, toca outro aspecto da nossa sensibilidade, comunicando às nossas almas m vigor, um alento, um firmeza sobre-humanas, para que possamos levar avante todos os empreendimentos e evitar todos os perigos, para a glória de Deus.
   Mas a vida espiritual não é para que nos encerremos em nosso castelo interior; toda a vida   exige relações com os demais, e de maneira singularíssima a vida espiritual. Nela temos deveres a cumprir com Deus e com nossos semelhantes; não podemos viver num relacionamento egoísta. Acaso a caridade não é o resumo do espírito cristão; e a caridade não exige que tenhamos comunicações com Deus e com nosso próximo?
E não somente a caridade, mas também a justiça e as outras virtudes exigem que mantenhamos relações cristãs e santas com os demais. Quantas vezes encontramos defeitos e deficiências no trato com os nossos irmãos! É tão difícil ser ao mesmo tempo justos e afáveis, e manter a delicadeza no trato com o nosso próximo!
   Para ordenar e dispor nossas relações com os demais há um grupo de virtudes que têm como centro a virtude cardeal da Justiça; para aqueles com os quais temos uma dívida rigorosa, é a justiça; para Deus, a religião; para nossos pais, para a nossa família e para a Pátria, a Piedade; para os nossos benfeitores, a gratidão etc. É um conjunto de virtudes que tem cada uma delas, seu objeto e sua função própria, e todas juntas ordenam e dispõem as nossas relações com Deus e com os nossos semelhantes.
   Mas é claro que no terreno próprio de cada virtude o Espírito Santo pode influir por meio de um dom, e que enquanto as virtudes têm sempre – como já repetimos muitas vezes – o selo humano, o selo da miséria e da imperfeição, o Espírito Santo, por meio de seus Dons eleva e comunica um modo divino às nossas relações com os demais.
   Para expor em poucas palavras o que é o Dom da Piedade, direi que unifica de maneira admirável, um princípio altíssimo, todas as relações que temos com os demais e as guia, tornando-as mais profundas e perfeitas,

   Primeiramente as unifica. Devemos notar que, enquanto no terreno das virtudes há uma multidão delas que regem as nossas relações, no mundo dos Dons, o Dom da Piedade, que tem como finalidade ordenar todas as nossas relações com os demais; porque nas alturas se unifica o que embaixo é múltiplo.
   O apóstolo são Paulo exprime com estas palavras este princípio altíssimo que serve de norma às relações: “Recebestes o espírito de adoção filial, pelo qual bradamos: ‘Abá, ó Pai’” (Rm 8,15). Falando do Espírito Santo, diz que é o Espírito de adoção que vive em nossas almas, o Espírito de adoção pelo qual clamamos a Deus, chamando-o Pai.
   Por ser Deus nosso Pai, temos com ele estreitíssimas e santas relações filiais, e deste Espírito de adoção que nos faz olhar a Deus como nosso Pai depreende-se a ordem e a união que o Dom da Piedade estabelece em nossas relações com Deus e com os nossos semelhantes.
   Vou esforçar-me por explicar esta doutrina. A justiça e as virtudes morais levam em conta, para regular nossas relações com os outros, o que devido a cada uma delas; existem dívidas estritas, poderíamos dizer matemáticas; mas há também dívidas nas quais a igualdade é impossível.

   Como é que vamos pagar a Deus com nosso amor os benefícios que recebemos dele? “Que retribuirei ao Senhor por todos os benefícios que dele recebi?” (Sl 115,12). Mesmo que lhe entregássemos nossa própria vida, nunca, nunca, chegaríamos a pagar o que dele recebemos. Dele tudo recebemos, e mesmo que lhe devolvêssemos tudo, sempre ficaríamos com uma dívida não saldada. Para pagar esta dívida na medida de nossa pequenez existe a virtude da religião.
   A virtude da piedade exige que paguemos aos nossos pais os benefícios que recebemos deles, benefícios que também nunca podemos pagar completamente. Se eles nos deram a vida, como poderíamos corresponder de maneira digna ao benefício recebido?
   Como a justiça, a religião e a piedade, há outras virtudes do mesmo grupo que regulam nossas relações com os outros e que têm uma norma adequada à matéria própria de cada um.
   Mas o Dom da Piedade não tem como norma a dívida, o benefício. O Dom da Piedade vê em Deus o Pai.
   A virtude da religião leva-nos a agradecer a Deus os benefícios recebidos e a dar-lhe uma honra e um culto por ser ele o Soberano do nosso ser; de Deus recebemos benefícios sem conta na ordem natural e na ordem sobrenatural, e estes benefícios fazem-no nosso Soberano, cabendo a nós o papel de subordinados; a Religião nos impele a corresponder aos benefícios de Deus e a cumprir os deveres que temos com ele como Soberano, por meio de todos os atos de culto.
   Mas o Dom da Piedade não pensa no que se deve a Deus, não mede a honra que corresponde a Deus pelos benefícios que recebemos de suas mãos. O Dom da Piedade inspira-se neste Espírito de adoção no qual clamamos a Deus, como a nosso Pai. Ele é Pai, é nosso Pai, e nós devemos sentir em nossos corações carinho filial; É próprio dos filhos honrar seus pais. O Dom da Piedade, ou o Espírito Santo por meio do Dom da Piedade, desenvolve em nossos corações esse afeto filial a Deus, e assim por sermos filhos, ocupamo-nos da honra e da glória do nosso Pai.
Compreendemos a distinção que existe entre a virtude da Religião e o Dom da Piedade? A virtude da Religião vê Deus como soberano, e o Dom da Piedade o vê como Pai. A virtude da religião leva em consideração os benefícios recebidos, ao passo que o Dom da Piedade não se fixa nos benefícios, mas leva a alma a dizer: és meu Pai, e como meu Pai, devo levar em conta sua honra, sua glória e sua grandeza.
   Na Escritura há certas fórmulas desinteressadas, filiais que exprimem os sentimentos próprios de uma alma que está sob o regime do Dom da Piedade: “Graças te damos, Senhor, Deus onipotente, a ti, que és e que eras, porque assumiste o teu grande poder e começaste a reinar” (Ap 11,17). Nesta passagem não se agradece os dons que nos concedeu, porque nos introduziu no seu Reino, porque nos criou; mas se agradece a potência da sua virtude, a glória do seu triunfo.  
   E todos os dias, na santa Missa, a Igreja exprime estes mesmos sentimentos no hino angélico. Acaso não notamos esta frase sublime: “Damos-te graças, Senhor, por tua grande glória”? Será que compreendemos a expressão? Não damos graças a Deus porque nos deu os seus dons ou porque nos criou; damos-lhe graças porque é grande, porque é glorioso; damos-lhe graças por sua glória.
   É próprio de um filho olhar para honra e a glória de seu pai, sem levar em consideração os benefícios que ele possa receber, nem o que ele possa receber dessa glória. Se o ama de fata como um filho bem nascido, olha com interesse e com satisfação imensa a honra e a glória de seu pai.
   Este é o Dom da Piedade, um Dom que nos leva a honrar a Deus e a honrá-lo não por aquilo que nos dá, não por aquilo que recebemos de sua mão munificente, não por aquilo que esperamos receber; mas por ele, porque é nosso Pai, porque nos extasiamos diante de sua grandeza e de sua glória. Não é este um sentimento delicado e sublime?
   E o Dom da Piedade distingue-se claramente da virtude da claridade, porque a virtude da claridade tem por objeto a Deus; por meio da caridade, sem dúvida, por essa filiação adotiva que o Espírito Santo nos faz sentir em nossa alma tem por raiz a Caridade.
   Mas, enquanto a Caridade nos faz amar a Deus em si mesmo, o Dom da Piedade nos faz velar por sua honra, oferece-lhe tudo o que podemos, tudo o que está ao nosso alcance, para que seja mais honrado, para que lhe seja dada mais glória.
   Quando santo Inácio de Loyola tomou como lema estas palavras: “Para a maior glória de Deus”, sem dúvida era inspirado pelo Dom da Piedade.

   Este Dom não só nos leva a cumprir todos os deveres que temos para com Deus, de maneira delicada, atenta, filial; mais que isso, como consequência lógica deste espírito de adoção que o Espírito Santo infunde em nossa alma, sentimos um interesse singular, um interesse carinhoso por todos os nossos irmãos.
   Da mesma forma que a piedade na ordem natural e na ordem das virtudes se refere principalmente aos nossos pais, mas como consequência lógica desta relação nos leva também a cumprir os nossos deveres com todos os consanguíneos, com todos que forma nossa família, e ampliando ainda mais, nos leva a amar nossa Pátria, porque nos sentimos intimamente ligados com os nossos concidadãos, formando com eles um só corpo moral e espiritual, assim, a partir do momento em que nós, pela efusão do Espírito Santo, sentimos que Deus é nosso Pai, temos que sentir a fraternidade com todos os homens.
   Porque todos os homens são nossos irmãos, se Deus é nosso Pai; porque essa glória e grandeza de Deus, da qual nos sentimos enamorados pelo Dom da Piedade, nos leva logicamente a honrar todo aquele que participa da grandeza e da glória de Deus. Todo cristão e todo homem que não está condenado possui uma participação dessa grandeza divina, ou pelo menos está destinado a possuí-la.
   Por conseguinte, o Dom da Piedade nos leva a ver em todos os homens irmãos nossos, faz-nos sentir a fraternidade dos filhos de Deus.
   Não recordamos que quando Francisco de Assis ainda não tinha encontrado seu verdadeiro caminho, quando, conforme às tendências de sua época, sonhava com a glória de um cavaleiro andante e pensava realizar algum empreendimento gigantesco, certo dia, ao aproximasse dele um leproso teve um movimento sobrenatural em sua alma e o abraçou, naqueles momentos recebeu uma revelação da fraternidade universal? Então compreendeu e sentiu que todos os homens somos irmãos. Foi um efeito maravilhoso do Dom da Piedade.
   E assim por este Dom altíssimo, vemos em Deus nosso Pai, e nos outros, nossos irmãos, e então cumprimos os deveres que temos com eles, não na medida de uma justiça estrita, mas com a verdade de um afeto imenso que trazemos na alma.
   Acaso um filho, para honrar seus pais, se põe a considerar até onde deve ir com sua generosidade? Acaso quando as pessoas têm o espírito de família e quando os irmãos se ama entre si, andam medindo o que cada um pode fazer pelos outros? Com razão disse santo Tomás: “O amor não tem medida; a medida do amor é não tê-la”. E quando não é o dever, mas o amor que inspira os nossos atos, rompemos todos os moldes, suprimimos todas as medidas e derramamos o nosso coração de maneira ampla e generosa.
   Assim é o Dom da Piedade. Pelo Dom da Piedade, a alma se entrega a Deus e se entrega aos demais sem reservas, com toda a generosidade, com toda a amplidão de um amor sobrenatural e divino.
   Para que acabemos de compreender o que é o Dom da Piedade, quero assinalar alguns dos principais efeitos que produz em nossas almas, quando este Dom alcançou seu perfeito desenvolvimento.
   No que se refere a Deus, o Dom da Piedade nos inspira sentimentos de confiança e nos move a entregar-nos a ele. Um filho tem confiança em seu pai, um filho entrega seu coração ao seu pai; assim a alma, sob o influxo do Dom da Piedade, tem em Deus uma confiança imensa e se entrega a ele de maneira total.
   Estamos lembrados do maravilhoso caminho descoberto por santa Teresa do Menino Jesus, nos tempos modernos? Digo descoberto, no sentido em que pode haver descobrimento nas coisas espirituais. Faz mais de 19 séculos que está escrito no         Evangelho esta frase sublime: “Se não vos fizerdes como crianças não entrareis no Reino de Deus”. (Mt 18,3; Mc 10,14-15). Era o caminho da santa Infância Espiritual, mas ninguém tinha compreendido, exposto e praticado a doutrina do Evangelho contida nesta frase, como Teresa de Lisieux.
   Não há dúvida de que para formar sua fisionomia dulcíssima e heroica contribuíram muitas virtudes e muitos dons, mas neste caminho da Santa Infância é muito evidente o Dom da Piedade. Fazer-se como uma criança, não é sentir propriamente nossa filiação divina?
   Dizia a Santa que, sendo moderna, queria que também na ordem espiritual houvesse grandes descobertas, como existe no material; que queria subir a Deus e chegar à perfeição num elevador; se tivesse vivido alguns anos mais teriam dito que num avião; mas em seu tempo só havia elevadores.
   E este elevador espiritual eram os braços de Jesus. Sentia-se como uma menina nos braços de seu Pai. E quantas vezes repetiu esta comparação! Não disse, quando a puseram como auxiliar do Noviciado, que se penduraria no pescoço de Jesus como uma criança se pendura no pescoço do seu Pai?
   A confiança ilimitada de Teresa de Lisieux em Deus era confiança filial; aquela doação total pela qual punha nas mãos de Deus tudo o que tinha, tudo o que era, era consequência do Dom da Piedade.
E nos altos graus deste Dom, o Espírito Santo infunde nas almas que o possuem o desejo de unir-se a Jesus Cristo vítima para expiar os pecados do mundo e para cooperar na glória de Deus.
   No fundo é um ensinamento cristão que todo o que comunga, não digamos os sacerdotes que oferecemos ministerialmente o sacrifício do Altar, mas o simples cristão que comunga, participa do sacrifício de Jesus Cristo. E participando deste sacrifício, todos devemos ter em nossos corações os mesmos sentimentos que o coração de Jesus. Portanto, quando comungamos, devemos sentir o anelo que sente o Coração de Jesus por glorificar o Pai e por expiar os pecados do mundo.
   As almas que vivem sob o regime do Dom da Piedade, nos altos graus deste Dom, experimentam de maneira divina, profunda, eficacíssima, os mesmos sentimentos que Jesus teve em seu coração ao oferecer o sacrifício do Calvário e o sacrifício do Cenáculo, e desejam unir seus próprios sofrimentos aos sofrimentos de Jesus, oferece-los com eles e trazer em seu coração um eco daquele anelo imenso e divino que Jesus teve em sua alma quando se ofereceu como vítima pelos pecados do mundo.

   E quanto aos atos que são próprios deste Dom, no que se refere às criaturas, no primeiro grau do Dom, a alma se comunica generosamente com os demais.
   No segundo grau, já não é a generosidade que dá o supérfluo, mas que dá até o necessário. Não recordamos uma frase do apóstolo são Paulo, frase estranha, frase audaz: “Desejaria ser anátema por meus irmãos?”
   O Apóstolo chegava a sentir o desejo de perder os dons divinos para dá-los aos demais; generosidade estranha, generosidade sem limites que procedo do Don da Piedade!
   O último grau deste dom, particularmente aquelas almas que se dedicam à vida apostólica, consiste em entregar-se sem reserva, em dar tudo e em dar-se a si mesmas pelos outros.   
   O apóstolo são Paulo experimentou maravilhosamente este efeito do Dom da Piedade quando disse: “Quanto a mim, da maior boa vontade prodigalizarei o que é meu, antes, prodigalizar-me-ei inteiramente a mim mesmo pelas vossas almas” (II Cor 12,15).

Tenho a impressão de que cada um dos Dons que exponho, embora o faça com brevidade e indique apenas alguns traços do Dom, apesar de minha pobre palavra não poder exprimir nem toda a sua formosura nem toda a sua grandeza, tenho a impressão de que cada um dos Dons que exponho, significa novos horizontes que abro às almas, fazendo com que se deem conta de um mundo desconhecido e misterioso, mas belíssimo, santo e divino.
   Assim é na verdade, quanto mais se sobe no conhecimento das coisas divinas, maior assombro se produz em nossa alma.  No mundo sobrenatural existem coisas de que apenas suspeitamos, e quando conseguimos vislumbrá-las, sentimos que nos elevamos um pouco da terra e que nossos olhos atônitos conseguem entrevar na excelsitude dos cumes a grandeza de Deus.
   Bastaria este efeito para justificar que trate de coisas tão altas. Na realidade são verdades altíssimas as relativas aos Dons do Espírito Santo. Mas acontece que todos nós temos estes Dons! É como se um fisiologista nos falasse de algumas coisas formosíssimas e misteriosas que se realizam em nosso organismo, coisas desconhecidas para os que não são iniciados nessa ciência, mas belíssimas. Ninguém poderia desinteressar-se destas coisas julgando-as muito altas; talvez seja difícil entende-las, mas é algo que se verifica em nosso organismo e que tem, por conseguinte, sumo interesse para nós.
   Da mesma forma, todos nós temos os Dons do Espírito Santo. O pecador que depois de muitos crimes, arrependido, encontra a absolvição de suas culpas na penitencia, já tem os Dons; porque não se pode ter a graça sem os Dons, nem se pode ter a graça sem o Espírito Santo, nem o Espírito Santo, nem o Espírito Santo se separa jamais dos Dons.
   Nós temos estas maravilhas. Se em nossas almas não conseguem o seu desenvolvimento completo, talvez seja culpa nossa; mas mesmo que não haja culpa, é deficiência nossa. Mas nós temos estes preciosos instrumentos do Espírito Santo em nossas almas.
   Se déssemos mais atenção às inspirações divinas! Se entrássemos mais de cheio na vida espiritual! Se nos deixássemos arrebatar pela beleza deste mundo desconhecido e misterioso! Em nossos pobres corações realizar-se-iam maravilhas semelhantes às que se realizam nos corações dos santos.
   Queira o Espírito Santo derramar sua luz em nossas almas, tocar nossos corações, revelar-nos o mundo da santidade e da graça, para que amemos mais e mais o Divino Espírito, para que nos deixemos conduzir por suas santas moções e para que, guiados por ele, penetremos neste mundo desconhecido e misterioso, mundo de luz e de amor, de generosidade e de devoção, mundo que não se compra nem se vende; naquele mundo eterno e dulcíssimo onde esperamos ser perpetuamente felizes no seio de Deus.


Do livro “Dons do Espírito Santo” de autoria de Luís M. Martinez, Arcebispo Primaz do México. Apresentação: Pe. Haroldo J. Rahm. SJ – Edições Paulinas – São Paulo – 1976.s